Há limites para o quão distante podemos ver: as primeiras galáxias, as primeiras estrelas e até mesmo a emissão do brilho remanescente do Big Bang quando os átomos neutros se formaram de forma estável pela primeira vez. No entanto, se não fosse pela propriedade da mecânica quântica de permitir uma transição de dois fótons entre estados esféricos de energia mais alta e mais baixa, nosso Universo não apenas pareceria muito diferente, mas não seríamos capazes de ver tão longe no tempo ou no espaço. Tradução da imagem: Hubble procura pela matéria perdida (Hubble looks for missing matter); da direita pra esquerda, Big Bang, Era da Reionização (Reionization Era), quasar, teia cósmica (cosmic web) e presente [13,7 bilhões de anos após o Big Bang] (Present [13,7 billion years after the Big Bang]). Créditos: NASA, ESA e E A. Feild (STSCI).
De muitas maneiras, nossas observações do Universo distante são as coisas mais próximas que chegaremos de ter uma máquina do tempo. Embora não possamos viajar no tempo, podemos fazer a segunda melhor coisa: ver o Universo não como ele é hoje, mas como era há muito tempo atrás. Sempre que a luz é emitida de uma fonte distante – como uma estrela, galáxia ou quasar – ela primeiro precisa atravessar as vastas distâncias cósmicas que separam essa fonte de nós mesmos, o observador, e isso leva tempo.
Mesmo na velocidade da luz, pode levar bilhões ou mesmo mais de dez bilhões de anos para esses sinais chegarem, o que significa que quanto mais longe vemos um objeto distante, mais perto do Big Bang estamos olhando. A primeira luz que podemos ver, no entanto, vem de uma época anterior a qualquer estrela ou galáxia: quando os núcleos atômicos e os elétrons do Universo se combinavam para formar átomos neutros. De maneira incrível, esta é apenas uma peculiaridade muito específica da física quântica que nos permite ver o Universo como ele era há muito tempo. Sem ela, os primeiros sinais não existiriam e seríamos incapazes de olhar para trás no tempo e a fundo no espaço como podemos hoje. Veja como a física quântica nos permite ver tão longe no espaço e no tempo.
Para entender de onde vem o primeiro sinal observável no Universo, temos que voltar no tempo: aos primeiros instantes do Big Bang. Na época em que o Universo era quente, denso, quase perfeitamente uniforme e cheio de uma mistura de matéria, antimatéria e radiação, ele estava se expandindo com uma rapidez incrível. Nesses primeiros momentos, havia regiões do Universo que eram ligeiramente mais densas que a média e regiões que eram um pouco menos densas que a média, mas apenas cerca de 1 parte em 30.000.
Se dependesse apenas da gravidade, as regiões superdensas cresceriam, atraindo mais matéria circundante do que regiões normais ou subdensas, enquanto as regiões subdensas cederiam sua matéria às regiões circundantes, mais densas. Mas o Universo não é governado apenas pela gravidade; as outras forças da natureza desempenham um papel importante. A radiação, por exemplo – particularmente na forma de fótons – é extremamente energética no início do Universo, e seus efeitos sobre como a matéria evolui são importantes de várias maneiras.
Em primeiro lugar, a matéria (e a antimatéria), se for eletricamente carregada, se espalhará rapidamente pelos fótons. Isso significa que qualquer quantum de radiação, a qualquer momento que encontrar uma partícula carregada, irá interagir e trocar energia com ela, com encontros sendo mais prováveis com partículas carregadas de baixa massa (como elétrons) do que com alta massa (como prótons ou núcleos atômicos).
Em segundo lugar, conforme a matéria tenta entrar em colapso gravitacional, a densidade de energia daquela região sobe acima desta média. Mas a radiação responde a essas densidades de energia mais altas fluindo dessas regiões de alta densidade para as de densidade mais baixa, e isso leva a uma espécie de “salto”, onde:
densidades aumentam,
a pressão do fóton aumenta,
fótons fluem para fora,
a densidade cai,
fazendo com que a pressão do fóton caia,
fazendo com que fótons e matéria fluam de volta,
aumentando a densidade,
e o ciclo continua. Quando falamos sobre as flutuações que vemos na radiação cósmica de fundo, elas seguem um padrão particular de “balanços” que corresponde a esses “saltos”, ou oscilações acústicas, ocorrendo no plasma do Universo primitivo.
Mas há uma terceira coisa acontecendo simultaneamente com tudo isso: o Universo está se expandindo. Quando o Universo se expande, sua densidade diminui, pois o número total de partículas dentro dele permanece o mesmo enquanto o volume aumenta. Uma segunda coisa, no entanto, também acontece: o comprimento de onda de cada fóton – cada quantum de radiação eletromagnética – se estende à medida que o Universo se expande. Como o comprimento de onda de um fóton determina sua energia, com comprimentos de onda mais longos correspondendo a energias mais baixas, o Universo também esfria à medida que se expande.
Um Universo que fica menos denso e esfria de um estado inicialmente quente e denso fará muito mais do que apenas gravitar. Em altas energias, cada colisão entre dois quanta terá uma chance de criar espontaneamente pares de partícula/antipartícula; contanto que haja energia suficiente disponível em cada colisão para criar partículas massivas (e antipartículas) via o conceito de E = mc² de Einstein, há uma chance de que isso aconteça.
No início, isso acontecia abundantemente, mas à medida que o Universo se expande e esfria, isso para de acontecer e, em vez disso, quando os pares de partícula/antipartícula se encontram, eles se aniquilam. Quando a energia cai para valores baixos o suficiente, apenas um pequeno excesso de matéria permanecerá.
À medida que o Universo continua a se expandir e esfriar – e à medida que a densidade e a temperatura caem – uma série de outras transições importantes acontecem. Em ordem:
quarks e glúons formam estados estáveis e ligados: prótons e nêutrons,
neutrinos, que anteriormente interagiam em abundância, não mais colidem com outras partículas,
o último dos pares de antimatéria, elétron e pósitrons, aniquila-se,
os fótons esfriam o suficiente para que as primeiras reações de fusão nuclear estáveis ocorram, criando os elementos de luz imediatamente após o Big Bang,
a dança oscilante entre matéria normal, matéria escura e radiação ocorre, levando ao padrão particular de flutuações que mais tarde crescerá na estrutura em grande escala do Universo,
e, finalmente, os átomos neutros podem se formar de forma estável, à medida que os fótons esfriaram o suficiente para não mais expulsarem elétrons dos núcleos aos quais se ligariam.
É somente até que esta etapa final seja concluída – uma etapa que leva mais de 100.000 anos – que o Universo se torna transparente para a luz presente nele. O plasma ionizado que existia anteriormente absorve e reemite fótons continuamente, mas uma vez que os átomos neutros se formam, esses fótons simplesmente fluem livremente e desviam para o vermelho com o Universo em expansão, criando a radiação cósmica de fundo que observamos hoje.
Essa luz, em média, chega até nós de uma época correspondente a ~380.000 anos após o Big Bang. Isso é incrivelmente curto em comparação com a história do nosso Universo de 13,8 bilhões de anos, mas é muito longo em comparação com as etapas anteriores, que ocorrem ao longo da primeira fração de segundo até os primeiros minutos após o Big Bang. Como os fótons superam os átomos em mais de um bilhão para um, mesmo um pequeno número de fótons superenergéticos pode manter todo o Universo ionizado. Somente quando eles esfriam até um limite específico – correspondendo a uma temperatura de cerca de 3000 K – esses átomos neutros podem finalmente se formar.
Mas há um problema imediato com essa etapa final, se você pensar a respeito.
Quando os elétrons se ligam aos núcleos atômicos, eles caem em cascata pelos vários níveis de energia em uma reação em cadeia. Eventualmente, esses elétrons farão sua transição mais energética: para o estado fundamental. A transição mais comum que ocorre é do segundo estado de energia mais baixa (chamado n = 2) para o estado mais baixo (n = 1), caso em que emite um fóton energético da série de Lyman.
Por que isso é um problema? Precisávamos que o Universo esfriasse abaixo de cerca de ~ 3000 K para que não houvesse fótons energéticos suficientes para reexcitar os elétrons do estado fundamental de volta a um estado excitado, onde seriam fáceis de ionizar. Então, esperamos e esperamos e esperamos e, finalmente, algumas centenas de milhares de anos após o Big Bang, chegamos lá. Nesse momento, os elétrons se ligam aos núcleos, eles caem em cascata em seus vários níveis de energia e, finalmente, fazem uma transição para o estado fundamental.
Essa transição energética final causa a emissão de um fóton da série de Lyman de alta energia. Agora, se você começou a formar átomos neutros em todo o Universo, pode calcular a distância que esse fóton da série de Lyman viaja antes de se chocar com um átomo neutro e comparar isso com a quantidade de desvio para o vermelho que ocorrerá para esse fóton. Se ele desviar para o vermelho em uma quantidade grande o suficiente, seu comprimento de onda aumentará e os átomos não serão capazes de absorvê-lo. (Lembre-se de que os átomos só podem absorver fótons de frequências específicas.)
Quando você faz as contas, no entanto, descobre que a esmagadora maioria dos fótons produzidos por essas transições para o estado fundamental – cerca de 99.999.999 em cada 100 milhões – simplesmente são reabsorvidos por outro átomo idêntico, que então pode facilmente se tornar ionizado.
Isso implica algo bastante perturbador: esperamos todo esse tempo até que o Universo se tornasse eletricamente neutro e, então, quando isso acontece, calculamos que praticamente todo átomo que se fizer isso será ele mesmo responsável por reionizar um átomo diferente do mesmo tipo.
Você pode pensar que isso significa que só precisamos esperar por um período de tempo suficiente, e então transições suficientes ocorrerão com um tempo suficientemente longo entre o momento em que os fótons são emitidos e o encontro com outro átomo. Isso é verdade, mas o tempo que levaria para o Universo se tornar eletricamente neutro não seria de ~ 380.000 anos, como foi o que aconteceu. Em vez disso, levaria cerca de ~ 790.000 anos para que essa transição ocorresse, onde o Universo teria caído para cerca de ~ 1900 K de temperatura.
Em outras palavras, a maneira mais simples de tentar formar átomos neutros – a maneira como acontece naturalmente quando os íons em nosso Universo se recombinam hoje – não pode ser o principal mecanismo de como isso ocorreu no início do Universo.
Então, como isso acontece? Você deve lembrar que o estado de menor energia para um elétron em um átomo, o estado n = 1, é sempre esférico. Você pode colocar até dois elétrons nesse estado, então o hidrogênio – o elemento mais comum no Universo – sempre tem um elétron no estado n = 1 quando chega nele.
No entanto, o estado n = 2 pode acomodar até oito elétrons: há dois espaços em um estado esférico (o orbital s) e dois espaços em cada uma das direções x, y e z (os orbitais p).
O problema é que as transições de um orbital s para outro são proibidas na mecânica quântica. Não há como emitir um fóton de um orbital s e seu elétron acabar em um orbital s de energia mais baixa, então a transição da qual falamos anteriormente, onde você emite um fóton da série de Lyman, só pode ocorrer a partir do estado 2 p para o estado 1 s.
Mas existe um processo especial e raro que pode ocorrer: uma transição de dois fótons do estado 2 s (ou 3 s, ou 4 s, ou mesmo orbital 3 d) para o estado fundamental (1 s). Ela ocorre apenas cerca de 0,000001% com a frequência das transições da série de Lyman, mas cada ocorrência nos traz um novo átomo de hidrogênio neutro. Esta peculiaridade da mecânica quântica é o principal método de criação de átomos de hidrogênio neutros no Universo.
Se não fosse por essa rara transição, de orbitais esféricos de alta energia para orbitais esféricos de baixa energia, nosso Universo seria incrivelmente diferente dos mínimos aos máximos detalhes. Teríamos diferentes números e magnitudes de picos acústicos na radiação cósmica de fundo e, portanto, um conjunto diferente de flutuações primordiais para o nosso Universo construir sua estrutura em larga escala. A história da ionização de nosso Universo seria diferente; levaria mais tempo para as primeiras estrelas se formarem; e a luz do brilho remanescente do Big Bang apenas nos levaria de volta a 790.000 anos após o Big Bang, ao invés dos 380.000 anos que temos hoje.
Em um sentido muito real, há uma miríade de formas que nossa visão do Universo distante – para os confins do espaço profundo, onde detectamos os primeiros sinais que surgem após o Big Bang – seria fundamentalmente menos poderosa se não fosse este transição mecânica quântica. Se quisermos entender como o Universo passou a ser do jeito que é hoje, mesmo em escalas cósmicas, é importante lembrar como esses resultados são sutilmente dependentes das regras subatômicas da física quântica. Sem ela, as paisagens que vemos olhando para longe, através do espaço e do tempo, seriam muito menos ricas e espetaculares.
Fonte: https://universoracionalista.org/como-a-fisica-quantica-nos-permite-ver-o-passado-atraves-do-espaco-e-do-tempo/
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